domingo, 13 de mayo de 2007

O que é, afinal, a democracia?


José Samarago volta a sua Azinhaga natal, Concelho de Gôlega, no meio do Ribatejo para voltar a sua infáncia para deixar-se levar pela criança que foi. As Pequenas Memórias nao é simplesmente uma viagem a sua aldeia de nascimento e muitas coisas mais.
No día 27 de maio o povo espanhol tem eleiçoes autárquicas e regionais, a nossa democracia - ainda nova - meresce voltar a ler as palavras do Saramago, podemos tirar muitas coisas das suas palavras.
É preciso questionar a democracia para podermos reiventá-la e não permitir que seja pervertida pelo poder econômico e financeiro que não é nem eleito pelo voto popular nem controlado pelos cidadãos.
Em seu livro Política, Aristóteles começa por nos dizer o seguinte: “Na democracia, os pobres são reis porque são mais numerosos e porque a vontade da maioria tem a força da lei”. Numa segunda passagem, ele parece começar por restringir o alcance dessa primeira frase, em seguida o amplia, completando-o e terminando por estabelecer um axioma: “A eqüidade, no âmbito do Estado, exige que os pobres não detenham, de forma alguma, mais poder do que os ricos, que não sejam os únicos soberanos, mas que todos os cidadãos o sejam em proporção a seu número. Estão aí as condições indispensáveis para que o Estado garanta com eficácia a igualdade e a liberdade.”
Aristóteles nos ensina que os ricos, ainda que participem com toda legitimidade democrática do governo da Polis, continuarão sendo sempre uma minoria devido a uma proporcionalidade incontestável. Por um lado, ele está certo: desde os tempos mais remotos que possamos evocar, os ricos nunca foram mais numerosos que os pobres. Apesar disso, os ricos sempre governaram o mundo, ou manipularam as pessoas que o governavam. Mais do que nunca, essa é uma constatação atual. Note-se, de passagem, que, para Aristóteles, o Estado representa uma forma superior de moralidade...
O obstáculo de Roma

Não é fato que, no momento exato em que a cédula é introduzida na urna, o eleitor transfere para outras mãos a parcela de poder político que detinha até então?

Qualquer manual de direito constitucional nos ensina que a democracia é “uma organização interna do Estado por meio da qual a origem e o exercício do poder político cabe ao povo, permitindo essa organização ao povo governado que também governe, através de seus representantes eleitos”. Aceitar definições como essa, de tal pertinência que quase se confunde com as ciências exatas, corresponderia, quando transpostas para nossa era, a não levar em conta a infinita graduação de estados patológicos com os quais, a qualquer momento, nosso corpo pode ser confrontado.

Em outras palavras: o fato de que a democracia possa ser definida com muita precisão não significa que ela realmente funcione. Uma breve incursão na história das idéias políticas leva a duas observações, muitas vezes relegadas sob o pretexto de que o mundo muda. A primeira para lembrar que a democracia surgiu em Atenas, por volta do século V antes de Cristo; ela pressupunha a participação de todos os homens livres no governo da cidade; baseava-se na forma direta e os cargos eram efetivos, ou atribuídos, por meio de um sistema misto de sorteio e de eleição; e os cidadãos tinham o direito de voto e o de apresentar propostas nas assembléias populares.

É, no entanto - esta é a segunda observação - em Roma, a sucessora dos gregos, é que o sistema democrático não conseguiu se impor. O obstáculo veio com o poder econômico colossal de uma aristocracia latifundiária que via na democracia um inimigo direto. Apesar do risco de qualquer tipo de extrapolação, seria possível deixar de questionar se os impérios econômicos contemporâneos não seriam também adversários radicais da democracia, ainda que mantenham as aparências?
Abdicação cívica

As instâncias do poder político tentam desviar nossa atenção do óbvio: dentro do próprio mecanismo eleitoral, encontram-se em conflito uma opção política, representada pelo voto, e uma abdicação cívica. Não é fato que, no momento exato em que a cédula é introduzida na urna, o eleitor transfere para outras mãos – sem qualquer contrapartida, salvo promessas feitas durante a campanha eleitoral – a parcela de poder político que detinha até então enquanto membro da comunidade de cidadãos?

O papel de advogado do diabo que assumo pode parecer imprudente. Mais um motivo para que examinemos o que vem a ser a nossa democracia e qual a sua utilidade, antes de pretendermos – uma obsessão de nossa época – torná-la obrigatória e universal. Essa caricatura de democracia que, como missionários de uma nova religião, procuramos impor ao resto do mundo não é a democracia dos gregos, mas um sistema que os próprios romanos não teriam hesitado em impor em seus territórios. Este gênero de democracia, deteriorado por mil parâmetros econômicos e financeiros, teria conseguido, sem dúvida alguma, mudar a opinião dos latifundiários do Lácio, que se teriam tornado os mais ferrenhos dos democratas...

Pode passar pelo espírito de alguns leitores uma desagradável suspeita sobre minhas convicções democráticas, tendo em vista minhas notórias posições ideológicas... Defendo a idéia de um mundo verdadeiramente democrático que se tornaria realidade dois mil e quinhentos anos depois de Sócrates, Platão e Aristóteles. Essa quimera grega de uma sociedade harmoniosa, que não se dividiria em senhores e escravos, tal como a concebem os cândidos espíritos que ainda acreditam na perfeição.

A vontade política e o voto

Poderão dizer: mas as democracias ocidentais não são censitárias, nem racistas e o voto do cidadão rico e branco tem o mesmo valor nas urnas que o do cidadão pobre e de pele morena. Se confiássemos em tais aparências, teríamos atingido o supra-sumo da democracia.

Sob o risco de diminuir essas paixões, eu diria que as realidades brutais do mundo em que vivemos tornam ridículo esse cenário idílico e que, de uma ou de outra maneira, acabaremos por cair num organismo autoritário dissimulado sob os mais belos paramentos da democracia.

O direito de voto, por exemplo, expressão de uma vontade política, também é um ato de renúncia a essa mesma vontade, pois o eleitor a delega a um candidato. O ato de votar, pelo menos para uma parcela da população, é uma forma de renúncia temporária à ação política pessoal, discretamente adiada até as eleições seguintes, quando os mecanismos de delegação de poder voltarão ao ponto de partida para tudo recomeçar de novo.

Vínculos reveladores

Essa renúncia pode constituir, para a minoria eleita, o primeiro passo de um mecanismo que muitas vezes autoriza, apesar das vãs esperanças dos eleitores, a determinação de objetivos que nada têm de democráticos e podem até ser autênticas ofensas à lei. Em princípio, não ocorreria a ninguém eleger como representantes no Parlamento pessoas corruptas, ainda que a triste experiência nos ensine que as altas esferas do poder, no plano nacional e internacional, são ocupadas por criminosos desse tipo ou por seus representantes. Nenhum exame ao microscópio dos votos depositados nas urnas permitiria tornar visíveis os vínculos reveladores das relações entre os Estados e os grupos econômicos cujas ações ilícitas – até de guerra – conduzem nosso planeta rumo à catástrofe.
A experiência confirma que uma democracia política que não se baseia numa democracia econômica e cultural de pouco adianta. Desprezada e relegada a ser o depositário de fórmulas obsoletas, a idéia de uma democracia econômica deu lugar a um mercado triunfante que beira a obscenidade. E a idéia de uma democracia cultural foi substituída por uma massificação industrial das culturas, não menos obscena, um pseudo-caldeirão que serve apenas para mascarar a predominância de algumas delas.
Democracia paralisada

Pensávamos ter avançado, mas, na realidade, recuamos. Falar de democracia se tornará cada vez mais absurdo se nos obstinarmos em identificá-la com instituições que respondem por partidos, parlamentos ou governos, sem proceder a um exame do uso que estes últimos fazem do voto que lhes permitiu o acesso ao poder. Uma democracia que não faz autocrítica está condenada à paralisia.
Não concluam que sou contra a existência de partidos: sou militante de um deles. Nem pensem que abomino parlamentos: eu os apreciaria mais se se dedicassem mais à ação do que à palavra. E também não imaginem que sou o inventor de uma receita mágica que permitirá aos povos que vivam felizes sem governos. O que me recuso a admitir é que só seja possível governar e desejar ser governado segundo os modelos democráticos vigentes, incompletos e incoerentes.

Qualifico-os assim porque não vejo outra forma de designá-los. Uma verdadeira democracia que, como um sol, inundasse todos os povos com sua luz, deveria começar pelo que temos à mão, ou seja, o país em que nascemos, a sociedade em que vivemos, a rua em que moramos.
Se essa condição não for respeitada – e não o é – todos os raciocínios acima citados – ou seja, o fundamento teórico e o funcionamento experimental do sistema – serão viciados. Purificar as águas do rio que atravessa a cidade de nada adiantará, se o foco da contaminação se encontra na nascente.
Eleição sem transformação

A questão principal que se coloca para qualquer tipo de organização humana, desde que o mundo é mundo, é a do poder. E o principal problema é o de identificar quem o detém, de verificar por que meios o conseguiu, o uso que dele faz, os métodos que utiliza e quais são suas ambições.

Se a democracia realmente fosse o governo do povo, para o povo e pelo povo, terminaria o debate. Mas não é esse o caso. E só um espírito cínico se arriscaria a afirmar que o mundo em que vivemos vai às mil maravilhas.

Também se diz que a democracia é o menos ruim dos sistemas políticos e ninguém ressalta que essa constatação resignada de um modelo que se contenta em ser “o menos ruim” pode constituir um freio à busca por algo de “melhor”.

O poder democrático é, por sua natureza, sempre provisório. Depende da estabilidade das eleições, do fluxo das ideologias e dos interesses de classe. É possível ver nele uma espécie de barômetro orgânico que registra as variações da vontade política da sociedade. Porém, de maneira flagrante, só se computam as alternâncias políticas aparentemente radicais, que resultam em mudanças de governo, mas que não são acompanhadas por transformações sociais, econômicas e culturais tão fundamentais quanto o resultado da eleição faria supor.
Operação estética barata

Na realidade, chamar um governo “socialista”, ou “social-democrata”, ou ainda “conservador”, ou “liberal”, e denominá-lo “poder” não passa de uma operação estética barata. Trata-se de fingir dar nome a algo que não está ali, onde querem nos fazer crer que esteja. Pois o poder, o verdadeiro poder, está em outro lugar: é o poder econômico. É aquele do qual percebemos o contorno em filigrana, mas que nos foge quando tentamos aproximar-nos e contra-ataca se entende que desejamos limitar sua influência, submetendo-o às regras do interesse geral.
Em termos mais claros: os povos não elegeram seus governos para que estes os “ofereçam” ao mercado. Mas o mercado condiciona os governos para que estes lhe “ofereçam” seus povos. Em nossa época de globalização liberal, o mercado é o instrumento por excelência do único poder digno desse nome: o poder econômico e financeiro. Este não é democrático, pois não foi eleito pelo povo, não foi gerado pelo povo e, principalmente, não tem por objetivo a felicidade do povo.
Governo dos ricos

Aqui, apenas enuncio verdades elementares. Os estrategistas políticos, de toda e qualquer filiação partidária, impuseram um silêncio prudente para que ninguém ousasse insinuar que continuamos cultivando a mentira e aceitamos ser seus cúmplices.

O chamado sistema democrático parece, cada vez mais, um governo dos ricos e, cada vez menos, um governo do povo. Impossível negar o óbvio: a massa de pobres convocada a votar jamais é chamada a governar. Na hipótese de um governo formado pelos pobres, em que estes representassem a maioria – como Aristóteles o imaginou, em sua Política –, eles não disporiam de meios para modificar a organização do universo dos ricos, que os dominam, os vigiam e os oprimem.

A pretensa democracia ocidental entrou numa etapa de transformação retrógrada que ela é incapaz de deter e cujas conseqüências previsíveis serão sua própria negação. Não é necessário que alguém assuma a responsabilidade de liquidá-la; ela própria se suicida diariamente.
O tabu da democracia

O que fazer? Reformá-la? Sabemos que reformar, como bem disse o autor do Il Gattopardo , nada mais é do que mudar o necessário para que nada mude. Renová-la? Que época do passado teria sido suficientemente democrática para que valesse a pena a ela retornar para, a partir dali, reconstruir com novos materiais aquilo que estivesse no caminho da perdição? A da antiga Grécia? A das repúblicas mercantis da Idade Média? A do liberalismo inglês do século XVII? A do século do Iluminismo francês? As respostas seriam tão fúteis quanto as perguntas...
O que fazer então? Paremos de considerar a democracia como um valor adquirido, definido de uma vez por todas e intocável para sempre. Num mundo em que estamos habituados a debater qualquer assunto, um único tabu persiste: a democracia. Salazar (1889-1970), o ditador que governou Portugal por mais de quarenta anos, afirmava: “Não se questiona Deus, não se questiona a pátria, não se questiona a família”. Nos dias de hoje, Deus é questionado, a pátria é questionada e, se não questionamos a família, é porque ela própria se encarrega de fazê-lo. Mas não se questiona a democracia.
Então, digo: questionemos a democracia em todos os debates. Se não encontrarmos um meio de a reinventar, não perderemos apenas a democracia, mas a esperança de ver um dia os direitos humanos respeitados neste planeta.. Isso seria o fracasso mais estrondoso de nossos tempos, o sinal de uma traição que marcaria a humanidade para sempre.
José Saramago. Agosto de 2004.
Merece la pena pensar en las palabras lúcidas de Saramago, hace más de 3 años, el 27 nos jugamos no solo alcaldías y Comunidades Autónomas, no, nos jugamos nuestro futuro porque han pasado tantas cosas desde que estas palabras fueron escritas, que a uno le aterran las que pueden pasar si no somos conscientes de lo que nos jugamos.