Fernando Calhau. Luz em plena noite.
Fernando Calhau é um caso singular da história de arte em Portugal pelo o que, em boa hora, a Fundação Calouste Gulbenkian decidiu, no âmbito das comemorações dos seus cinquenta anos, organizar uma mostra que relembra e revisita o seu trabalho, numa exposição dividida em duas fases e com um título insistente e mágico: “Convocação I e II”. O volume da opus de Fernando Calhau é, só por si, eloquente no que diz respeito à dimensão e qualidade de um trabalho feito de inteligência, saber, humor e consistência que uma estúpida morte prematura interrompeu.
Mas comecemos pelo princípio: Calhau nasceu em Lisboa em 1948 e fez a sua primeira exposição na Cooperativa Gravura (“Gravuras Brancas”), aos vinte anos. Estes trabalhos monocromáticos, numa linha que nunca deixou de explorar ao longo da vida, mostravam já a sua originalidade e demarcavam-no das correntes de arte então conhecidas em Portugal. Cursou Pintura na Escola de Belas-Artes da capital onde conheceu alguns dos que se tornaram seus amigos para a vida. Já nessa altura, de enorme euforia criativa e grandes cumplicidades – contra a inércia do País em geral e o ensino académico em particular – Fernando Calhau criava, à sua volta, um clima de interesse apaixonado pelos assuntos relativos à arte e às chamadas “vanguardas”. Com Julião Sarmento, seu companheiro de Escola e “cúmplice” ao longo da vida – trabalharam juntos, também, na antiga Secretaria de Estado da Cultura, a partir de 1976, sob a égide de Eduardo Prado Coelho – aventurou-se na utilização de novos materiais e diferentes suportes, criando uma autêntica revolução na Escola e no meio artístico, essencialmente conservador. Calhau e Sarmento pintavam com tinta acrílica, desdenhando o óleo que era considerado como o material dos “verdadeiros artistas”, e secavam rapidamente os trabalhos, ao sol, no pátio da Escola. Queriam experimentar bem e depressa. Resolutamente, procuravam informação que viesse dos Estados Unidos e de Inglaterra, contrariando a tendência dos artistas portugueses para se virarem para Paris, algo que permanecia desde o século XIX.
Com a cabeça cheia de arte Pop e de Rock n’ Roll, Fernando Calhau, mal terminou a licenciatura, em 1973, partiu para Londres com uma Bolsa da Fundação Gulbenkian e ingressou na famosa Slade School of Arts , onde se especializou em técnicas de gravura. Durante um ano trabalhou nas suas pesquisas, que incluíram o início do uso da fotografia para fixar texturas como erva, rochas, mar e areia que se transformaram em fotogravuras e, mais tarde, em filmes (“Mar” I, II e III - 1976). Calhau professava um interesse especial pela produção em série. Agradava-lhe essa dessacralização da arte e ao intensificar a produção de “séries” de grande beleza, sensibilidade e simplicidade desfazia a ideia da importância da “obra única” e da singularidade “sagrada” do artista.
Os anos setenta foram de intensa actividade. Fazem parte deste período os “quadros verdes” e desenhos (lápis de cor sobre papel) de uma delicadeza incomparável, bem como as impressões heliográficas, os desenhos a tinta permanente e os filmes Super 8. Artistas como Donald Judd, Joseph Kosuth, Lawrence Weiner, Joseph Beuys faziam parte do seu universo, o conceptualismo impunha-se e Calhau explorava com firmeza os duros caminhos da rotura com a tradição artística, trabalhando exaustivamente a forma e a cor. Em 1978 realizou um conjunto de trabalhos, “Night Works”, e em 1979 foi a vez de “Dark Pages”, em que os negros e os cinzentos foram tomando conta do espaço da tela e do papel, na continuação da procura no sentido de produzir composições minimais e monocromáticas. Resistia assim, à sua maneira muito particular, às modas e ao ímpeto do pós-modernismo. Com a sua habitual serenidade e maturidade intelectual apresentou o resultado de uma longa reflexão, em torno da pintura negra usando também néon e placas de aço, na Galeria Luis Serpa, em 1987 e, de novo, em 1989.
Toda a pesquisa que Calhau fará, a partir daqui, intensificar-se-á em torno dos conceitos de espaço e de tempo. A sua pintura, seja em suporte tradicional ou não, reflecte uma busca metafísica e uma quase “irrealidade” que irá marcar a sua vida e obra até ao ano da sua morte, em 2002, quando também inaugura a grande exposição na Fundação Gulbenkian “Work in Progress”. (O título é, como sempre, um reflexo da personalidade do artista, um desafio ao tempo que se estava a esgotar, para ele).
É preciso que se diga que estas duas exposições, agora na Gulbenkian – que complementam, em certa medida, “Work in Progress” – vêm confirmar o que já se sabia: que Calhau é um dos mais emblemáticos artistas do século XX, que o seu trabalho é uma referência incontornável. Estes juízos de valor ficam, no entanto, muito aquém da sua importância. Na realidade, Calhau tornou-se um “clássico”, o centro de um cânone e a beleza do seu trabalho perdurará como matriz e inspiração de gerações futuras.
Na longa entrevista que deu a Delfim Sardo e que consta do catálogo de “Work in Progress” diz Fernando Calhau: “Interessa-me muito pouca coisa (em arte). Interessa-me o (Donald) Judd, o Vermeer, “A Tempestade” do Giorgione, o Giotto. Interesso-me sempre por artistas rígidos. Interessa-me o (Richard) Serra, o Warhol. Quase toda a Pop. Gosto de outras coisas com uma componente afectiva que não consigo dissociar. Gosto do trabalho do Julião Sarmento, da pintura do Michael Biberstein, do Douglas Gordon.” Assim era o Fernando Calhau: um grande pintor com gostos precisos e ecléticos, um extraordinário artista com uma formação fora do comum e um amigo terno e atento, possuidor de um notável e refinadíssimo sentido de humor. Quem o conheceu desde os tempos da Escola recorda sempre a forma desarmante como, com notável inteligência, sabia desmistificar os incontáveis enganos da vida. O homem que se considerava pintor acima de tudo enfrentou o drama da doença, do cancro que o foi devastando, com uma fortaleza, dignidade e desassombro invulgares. A brutal seriedade da morte tornou-se visível no seu trabalho mas a coragem e a tranquilidade com que encarou o seu fim transformou a sua obra em algo de uma beleza única, um exemplo muito raro de consciencialização e de iluminação.
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